O Homem mais Rápido do Mundo: Francesco Agello e o Macchi MC.72

O homem mais veloz do mundo!

Por pouco mais de seis anos Francesco Agello, oficial da Regia Aeronautica italiana foi o homem mais veloz do mundo. Mas foi um caminho difícil, e o herói, improvável.

O Troféu Schneider

No final da década de 1920 o desempenho dos aviões avançava rapidamente, impulsionado em parte pela disputa de prêmios como o Troféu Schneider.

Instituído pouco antes do início da I Guerra, o Troféu Schneider era conferido ao mais veloz hidroavião a cumprir um percurso pré-determinado. A disputa era basicamente anual, no verão – embora nos últimos anos as disputas tivessem passado a ser a cada dois ou mais anos em função dos altos custos e do tempo necessário para o desenvolvimento dos competidores. A posse definitiva do troféu seria garantida com três vitórias consecutivas no espaço de cinco anos e o local da disputa de cada evento era definido pelo vencedor do ano anterior. A conquista do Schneider tornou-se uma questão de honra nacional para franceses, ingleses, italianos e americanos, com ampla cobertura pela imprensa e vários milhares de espectadores acompanhando as corridas in loco e muitos mais pelo rádio – um dos maiores eventos esportivos da época, senão o maior. Após a saída dos americanos e seus Curtiss após a edição de 1926 e sucessivas falhas dos franceses de apresentar um competidor viável, a disputa ficou praticamente restrita a um duelo entre os ingleses e os italianos. Os mais fortes competidores ingleses então eram os Supermarine de Reginald Mitchell, impulsionados inicialmente por motores Napier Lion e depois pelos famosos Rolls-Royce “R” – uma parceria que resultaria alguns anos depois na lenda que foi o Spitfire.

Já os italianos estavam particularmente apaixonados pela competição. Em 1919, primeira edição após a I Guerra, os italianos foram os únicos a completar a prova disputada sob intenso nevoeiro. Os árbitros ingleses declararam a prova nula sob intensos protestos dos italianos, que tiveram que se contentar em sediar a próxima edição da Copa no ano seguinte. Em 1920 e 1921 os italianos venceram em casa de forma convincente e quase ficaram definitivamente com o Troféu em 1922, perdendo de forma frustrante para um Supermarine Sea Lion inglês em Nápoles diante de uma multidão de tifosi.  As disputas de 1923 e 1925 foram vencidas pelos americanos  – em 1923 a Itália sequer enviou competidores.

O novo regime do Duce Benito Mussolini encampou a competição como uma forma de demonstrar a qualidade da engenharia italiana e indicou o grande aviador e Ministro do Ar Italo Balbi para capitanear os esforços italianos na Copa Schneider. Os esforços italianos começaram a frutificar em pouco tempo. Após uma vitória relativamente tranquila do Macchi M.39 com motor Fiat AS.2 pilotado por Mario Bernardi na Copa de 1926, disputada nos EUA, a Copa de 1927 foi transformada por Mussolini num grande espetáculo. Cerca de 250 mil espectadores reuniram-se em Veneza para assistir a um grande fiasco da equipe italiana. Nenhum dos três Macchi M.52 da equipe completou a prova, vencida pelos Supermarine S.5 ingleses com motor Napier Lion.

Uma consequência da derrota de 1927 foi a criação da Scuola Alta Velocità, depois denominada oficialmente Reparto Sperimentale Alta Velocità, um estabelecimento ligado a Regia Aeronautica que tinha a missão de aglutinar o desenvolvimento da aviação de alta velocidade italiana. A escola foi instalada em Desenzano del Garda, na margem sul do Lago di Garda, próximo a Brescia (clique aqui para ver onde fica). Sob o comando do Tenente Coronel Mario Bernasconi, a S.A.V formou uma geração de pilotos excepcionais que foram reunidos aos melhores fabricantes, engenheiros e mecânicos especializados em aviões de corrida italianos. Os resultados surgiram rapidamente e a Itália novamente estabeleceu-se como uma importante força na luta pela Copa Schneider e pela primazia na aviação de alto desempenho. 

A próxima disputa da Copa aconteceu em Calshot Spit, próximo a Southampton em 1929. A competição foi adiada por um ano em função do falecimento de Jacques Schneider, o idealizador da competição. Os italianos alinharam dois Macchi M.67 e um M.52.

Os motores Isotta-Fraschini dos M.67 falharam antes de completada a segunda volta do percurso de 350 km e os ingleses venceram novamente, com um Supermarine S.6 equipado com o novo motor Rolls-Royce “R”.

O MC.72

A próxima Copa foi marcada para setembro de 1931 e os italianos sabiam que tinham que superar os ingleses a todo custo. Com forte apoio governamental, determinou-se que a campanha seria focada em um único conjunto de avião e motor. A tradicional Macchi, fornecedora dos últimos competidores italianos, foi a escolhida para o projeto do avião que receberia o nome de MC.72. Seu projetista, o já consagrado Mario Castoldi, especificou que o motor do MC.72 deveria ser capaz de desenvolver pelo menos 2.300 cv sustentados e 2.800 cv em tiros curtos, pesar menos de 850 kg e com tudo isso ainda ter um consumo relativamente baixo de combustível. Após o fiasco da Isotta-Fraschini na Copa anterior, a Fiat foi a indicada para fornecer esse motor.

Em 1929, a Fiat só dispunha do AS.5, um motor que entregava apenas 1000 cv e havia sido empregado no seu malfadado C.29, projetado por Celestino Rosatelli para a disputa de 1929. Naquele ano os dois primeiros protótipos do C.29, pilotados por Francesco Agello, o piloto de menor patente da S.A.V. e alocado para testar os projetos da Fiat, foram perdidos em acidentes dos quais Agello escapou graças a muita sorte (um desses aviões foi recentemente descoberto em bom estado no fundo do lago). Um terceiro C.29 ainda foi preparado às pressas mas não conseguiu ficar pronto a tempo de alinhar para as corridas da Copa de 1929. Um Macchi M.52 competiu em seu lugar – e acabou em segundo lugar após o fiasco dos M.67.

O tempo era curto para desenvolver um motor com mais que o dobro da potência. A solução encontrada pelo diretor do Reparto Progetti Speciali da Fiat, Tranquillo Zerbi, foi acoplar dois AS.5 em tandem, resultando no monstruoso AS.6 de 24 cilindros e 50 litros de capacidade. Zerbi, na Fiat desde 1919, fora o responsável por todos os projetos dos motores da série AS (Aviazione Spinto) e certamente sabia onde poderia chegar com os recursos que dispunha.

A motorização não convencional fazia o Macchi M.72 ser praticamente um bimotor, já que os motores operavam de forma relativamente independente, com eixos de manivelas separados que acionavam hélices contra rotativas por meio de eixos concêntricos. Os motores compartilhavam o supercharger, o cárter e o coletor de admissão. Surpreendentemente, o motor heterodoxo comportou-se relativamente bem na bancada: em abril de 1931 o motor já conseguia desenvolver 2.300 cv por uma hora contínua. Chegara a hora do MC.72 voar.

Os primeiros testes revelaram um problema recorrente de retorno de chama no coletor de admissão, o que poderia representar um grande risco para a integridade do motor e da aeronave. Tentando demonstrar o problema para os engenheiros da Fiat, em 2 de agosto de 1931 o MM.178 pilotado pelo Capitão Giovanni Monti explodiu em pleno ar, matando o piloto e destruindo um dos cinco MC.72 previstos para o programa (numerados MM 177 a MM181). Monti era o mais qualificado piloto do grupo, sobrevivente de queimaduras graves quando seu M.67 teve um duto de arrefecimento estourado na segunda volta da corrida da Copa de 1929.

A um mês da Copa, os italianos (e os franceses, que também tinham problemas com o desenvolvimento dos seus motores) solicitaram um adiamento da competição aos ingleses. Britanicamente a solicitação foi recusada, sob o argumento que a competição só poderia ser realizada na data prevista por causa de restrições orçamentárias decorrentes da crise mundial. Fair play ou não, o fato é que os ingleses “competiram” sozinhos em setembro de 1931 e conquistaram definitivamente a Copa Schneider com um aperfeiçoado Supermarine S.6B, batendo logo em seguida o recorde mundial absoluto de velocidade com 655,8 km/h.

Restava a questão de se o MC.72. poderia ter sido capaz de bater o S.6B. Antes do acidente fatal, Monti havia voado em um teste o MC.72 a 604 km/h, o que indicava que os italianos seriam bastante competitivos se tivessem tido um pouco mais de tempo para preparar seus bólidos. Os italianos decidiram, mesmo com a Copa virtualmente perdida, provar que superariam a marca que seria atingida pelo defensor inglês: uma demonstração seria realizada na Itália na mesma data da disputa do Troféu, 13 de setembro de 1931.

Novamente a tragédia se abateu: no dia 10, em um vôo de testes, o MC.72 MM180 pilotado pelo Tenente Stanislao Bellini espatifou-se contra uma margem do Lago di Garda, logo após superar a marca dos 634 km/h. Novamente uma explosão no motor, mais um piloto morto e um segundo avião destruído. O MC.72 foi proibido de voar até que se sanasse a causa das explosões.

Os recordes

A suspeita então recaía sobre o combustível, e uma vez superada a questão do troféu os italianos contrataram em 1932 o renomado engenheiro inglês Rod Banks, que desenvolvera o combustível usado pelos Rolls Royce “R”. Banks constatou que os italianos não haviam calculado corretamente o efeito da velocidade desenvolvida pelo avião na admissão do ar para o motor, o que gerava uma mistura excessivamente pobre – uma causa conhecida para o retorno de chama na admissão e que também havia sido enfrentado no programa inglês. Uma vez regulado corretamente o motor para as condições de alta velocidade, o retorno de chama desapareceu e os AS.6 finalmente tornaram-se propulsores confiáveis o suficiente para tentar recordes. Durante a retomada dos testes o novo piloto titular, Ariosto Neri, escapou de um grave acidente em 6 de junho quando a cauda do MC.72 quebrou em pleno ar. Neri conseguiu controlar o avião e pousar em segurança, salvando o avião e sua vida. A sorte de Neri esgotou-se em 6 de setembro, poucas semanas depois, quando perdeu a vida fazendo acrobacias num caça CR.20, em frente a Desenzano.

Ao longo de 1933 o MC.72 quebrou um a um os recordes de velocidade e estabeleceu o recorde absoluto de velocidade em 10 de abril com incríveis 682 km/h pilotado por Agello, que finalmente havia sido designado como o principal piloto da equipe para vôos de velocidade. O recorde absoluto seria quebrado ainda mais uma vez, em 23 de agosto de 1934: com um motor AS.6 aperfeiçoado e 2.800 cv sob o capô, Agello voou o MC.72 MM181 a 709,209 km/h no circuito regulamentar de 3km. . Somente seis anos depois do primeiro recorde de Agello é que Hans Dieterle, pilotando um protótipo especialmente modificado do Heinkel 100, lhe tomaria o título de homem mais rápido do mundo.

O recorde de velocidade para hidroaviões somente seria batido por um Beriev Be-10 a jato em outubro 1961; o recorde de Agello para hidroaviões com motor a pistão perdura até hoje, mais de oito décadas passadas. O MM181, ao que consta, nunca mais voou e está preservado junto com um motor AS.6 e vários outros idrovolanti corsa relacionados às campanhas italianas no Troféu Schneider no Museo Storico dell’Aeronautica Militare em Vigna di Valle, nos arredores de Roma. Outro exemplar de um motor AS.6 pode ser visto no Centro Storico Fiat em Turim.

O governo italiano encerrou as atividades do Reparto Sperimentale Alta Velocità em agosto de 1936. Seus oficiais foram realocados e alguns pilotos das quatro turmas ali formadas encontraram ocupação como pilotos de testes. O terreno onde se localizava o Reparto ainda pertence às Forças Armadas Italianas. Parte das edificações está fechada ao público, enquanto que o terreno adjacente forma o Parco de’ll Idroscalo, uma área de lazer à beira do Lago di Garda. Ali perto, na Piazza Matteotti, fica um monumento aos aviadores do RAV e uma placa alusiva.

Mario Castoldi nunca escondeu que a experiência com os idrovolanti corsa, especialmente no projeto do MC.72, foi fundamental para o desenvolvimento de vários de seus futuros projetos na Macchi – entre eles os caças MC.200 Saetta, MC.202 Folgore e MC.205 Veltro, considerados por muitos os melhores caças italianos do seu tempo.

Por outro lado, o projeto do motor Fiat AS.8, um V-16 de 2.000 cv e grande potencial foi interrompido em 1940. No seu lugar seriam fabricados sob licença motores alemães como os DB-601 e DB-605.

Francesco Agello, como muitos pilotos de prova, encontrou seu destino numa colisão em pleno vôo quando testava para a Macchi um caça MC.202 em 24 de novembro de 1942. Hoje é nome de uma avenida em Desenzano del Garda e lembrado como herói da aviação italiana.

Afinal, ele foi por alguns anos o homem mais rápido do mundo!

Alguns comentários sobre o Macchi MC.72

O M.C.72 incorporava algumas das mais modernas tecnologias aeronáuticas dos primeiros anos da década de 1930.

Primeiramente, era um hidroavião. Os flutuadores acabavam trazendo uma vantagem aerodinâmica quando comparados com as pernas fixas dos trens de pouso dos aviões baseados em terra da época, já que trens de pouso retráteis ainda eram uma raridade absoluta e considerados muito inseguros para aviões de alto desempenho.

Tirantes estruturais x Limpeza aerodinâmica. Ainda no campo da aerodinâmica, estamos no final dos anos 20, e as vantagens das estruturas em cantilever apresentadas por projetistas como Fokker uma década e meia atrás ainda não eram aceitas por todos. As asas muito delgadas especificadas para os aviões de corrida da época pouco ajudavam e assim, enquanto os projetistas procuravam fazer seus aviões cada vez mais delgados e sem protuberâncias, por outro lado os tirantes estruturais continuavam impávidos criando arrasto. Menos de meia década depois eles desapareceriam por completo dos aviões de alto desempenho.

Radiadores. O MC.72 era praticamente um “radiador voador”. As distintivas placas dos trocadores de calor por evaporação, em bronze polido, estavam presentes por toda a aeronave, nas asas, fuselagem, cauda, flutuadores e seus pilões. O sistema não era de todo revolucionário e proporcionava a refrigeração suficiente para o enorme motor AS.6 sem aumentar significativamente o arrasto (a eliminação de radiadores protuberantes mais que compensava as perdas causadas pela rugosidade dos trocadores de calor de superfície).

Hélices contrarotativas. Mais que um mero efeito colateral da motorização heterodoxa, essa configuração eliminava o torque gerado pela hélice, particularmente perigoso em hidroaviões na fase de navegação na água. Lembremos que as provas do Troféu Schneider previam um trecho cronometrado em que o avião deveria estar em contato com a água, ou seja, não bastava voar rápido, era necessário também navegar rápido e com segurança.

Passo regulável. Diferentemente da maioria dos aviões da época (mesmo os mais avançados), as hélices do MC.72 podiam ter o passo das hélices regulado, ainda que somente no solo. A prática comum na época ainda era usar hélices de passo fixo – em caso de necessidade, mudava-se a hélice.

Diedro. O MC.72 praticamente não tinha diedro nas asas. Não sei explicar o motivo desta escolha, mas sabe-se que a ausência de diedro torna o avião extrememente sensível aos comandos por falta de estabilidade inerente.

 

O Macchi MC.72 em escala

Até recentemente o modelista que desejasse montar um MC.72 na escala 1/72 podia escolher entre o rústico kit da Delta lançado nos idos de 1973 ou tentar fazer um em scratch. Em outras escalas havia um kit também muito básico da Smér (algumas fontes citam como 1/48, outras como 1/50) e alguns kits em vacuform ou resina na 1/32, todos de qualquer maneira caríssimos e quase impossíveis de se obter. Eis que no segundo semestre de 2016 a húngara SBS lançou um kit 1/72 do “avião do recorde” em resina, com alguns detalhes menores em fotogravados e uma folha de decalques. Recebemos um exemplar e preparamos um review, que pode ser acessado aqui. No início de 2017 a SBS lançou outro kit com uma versão mais “antiga” do MC.72. O mesmo fabricante também disponibiliza um conjunto de peças em fotogravado para os tirantes estruturais.

Referências

Em inglês:

http://www.historynet.com/aviation-history-schneider-trophy-race.htm

http://fly.historicwings.com/2012/10/agello-and-the-macchi-m-c-72/

http://warbirdsnews.com/warbird-articles/macchi-castoldi-m-c-72-worlds-fastest-piston-powered-seaplane.html

http://www.air-racing-history.com/aircraft/Macchi-Castoli%20MC%2072.htm

http://www.italianways.com/the-macchi-castoldi-m-c-72/

https://www.thisdayinaviation.com/tag/fiat-as-6/

http://www.airrace.com/Schnieder-Races-rs.htm

Em italiano:

http://www.aeronautica.difesa.it/storia/museostorico/Pagine/MacchiMC72.aspx

http://www.aeronautica.difesa.it/comunicazione/notizie/archivio/2015/Pagine/20150916_Dismissione-immobiliFirmata-lettera-di-intenti-DifesaComune-di-Desenzano-del-Garda-.aspx

Em outras línguas:

http://www.hydroretro.net/cup.php  (em francês)

http://www.fliegerweb.com/de/lexicon/Geschichte/Macchi+MC.72-581 (em alemão)

Na Wikipedia:

https://it.wikipedia.org/wiki/Macchi-Castoldi_M.C.72

https://en.wikipedia.org/wiki/Macchi_M.C.72

https://it.wikipedia.org/wiki/Francesco_Agello

https://en.wikipedia.org/wiki/Francesco_Agello

https://en.wikipedia.org/wiki/Mario_Castoldi

https://it.wikipedia.org/wiki/Fiat_AS.6

https://en.wikipedia.org/wiki/Schneider_Trophy

Videos:

Francesco Agello – Ministeriodifesa (excelente video, em italiano):

Il fulmine con gli scarponi (muitas fotos, texto e narração em italiano):

Macchi M.C. 72 (narração e legendas em inglês):

1929 Schneider Trophy (sobre a disputa de 29, em inglês):

Il relitto dell’idrocorsa Fiat C.29 pilotato da Francesco Agello (em italiano, sobre a descoberta do M.29 de Agello afundado no Lago di Garda): 

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